domingo, 28 de setembro de 2008

À Sanidade - Pedro Corgozinho

Me pergunto se as pessoas com as quais convivi estão perdendo a humanidade, ou se sou eu quem o fiz, ou ainda se nenhum de nós nunca a teve e agora alguns de nós conquistam alguma subjetividade - a custo de muito sofrimento, claro. A subjetividade custa muito, muito mesmo. Normalmente ela custa a saúde de uma pessoa. Aliás, não deve ter sido sempre assim. Mas as coisas tem mudado com velocidade espantosa, e agora pelo menos é assim.
O fator humano está em falta. Não é fácil encarar o mundo de forma humana, ñão este mundo, pois se terá que engolir que o outro é de carne e osso e sofre e sente dor e morre, etc. Se já não é fácil viver sabendo-se humano, talvez seja aind amais difícil saber o outro humano. E isso tem muito que ver com a distância na qual vivemos.
Não nos enganemos, não brinquemos a respeito: a única distancia real é a desigualdade social, é a base material, é de ordem socio-economica. É por esta distância que estamos condenados a viver a sós, é esta a distância que se abateu sobre nós. Não que entre alguns de nós haja esta diferença, não, a maioria de nós tem base material parecidíssima. O fato é que a desigualdade social presente efetivamente, realmente, objetivamente no mundo (todos esses adjetivos e ainda há quem duvide, há quem recorra a idealismos capazes de colocar em dúvida a base material, capazes de especular sobre o capital e seu poder, enfim, é uma tristeza a leseira do mundo), ela basta para que todo o resto trunque. A sanidade é uma tarefa: é a tarefa de minimizar os efeitos dessa desigualdade nas nossas vidas. Ora, mas fazê-lo individualmente NÃO SIGNIFICA ABSOLUTAMENTE NADA, exatamente porque a diferença social não é subjetiva, não é um dado de um individuo, mas é dada por uma relação entre os individuos e, como tal, só uma relação entre indivíduos pode ter algum poder subversivo contra ela.
Não estou propondo uma militância, não estou fazendo um convite à comunhão de nossas vidas, não estou propondo que vivamos estéticas de grupo ou ainda que tentemos reviver movimentos lesados do passado, como pode parecer sugerir o assunto desse e-mail. Estou apenas considerando que a sanidade é uma tarefa. Que é uma tarefa difícil, que é ridículo pensar em sanidade individual, que solidão não "significa nada de significativo", ainda que estejamos todos vivendo pateticamente sozinhos e dessa condição não consiguimos escapar. A sanidade é uma tarefa que talvez dependa de uma mudança radical na ordem material das coisas. A sanidade é uma tarefa que eu não posso levar a cabo sozinho, que todos nós vivendo juntos não poderemos realizar, enfim: A sanidade é uma tarefa complicadíssima e eu espero que nessa altura da vida nenhum de vocês esteja pensando que vive dignamente ou de forma legitimamente humana; que nenhum de nós recaia nessas leseiras incríveis de querer ser ataraxicos, de suspender o juízo sobre a condição real e pateticamente miserável de nossas vidas, de achar que a cerveja e o beque sagrados são fumaça e sangue divinos da redenção individual ou coletiva. Espero que cada um de nós esteja sabendo de como estamos inseridos no ridículo de ser-quase-humano, que estamos constrangidos pelas condições reais materiais do mundo, PELA FALIBILIDADE DA CARNE, pela nossa incapacidade de levar a cabo a tarefa da sanidade e emancipar-nos a nós mesmos, visto que tal emancipação depende da emancipação de todo mundo, e não da emancipação do conforto de um apartamento, seja ele no centro, marajó, funcionários, santa efigenia, bom despacho, na puta-que-o-pariu. Que cada um de nós saiba que é feio, que o outro é feio, que é feio o mundo insano.
que ninguém confunda isso com um mea culpa, que ninguém seja cristão para além da conta. Se você ainda não apelou, está lendo até agora, saiba ainda que estou aliviado de estar dizendo tudo isso depois de uma grande garrafa de café e uma chuva maravilhosa que cai lá fora e mata mendigos de frio, resfriado. Que os ratos infectam a enxorrada na senzala do mundo.
Que a sanidade é uma tarefa!

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